quarta-feira, 16 de julho de 2008

Confissão

Alice tem cinco anos, eu tenho trinta e dois. Abelardo devia ter uns trinta quando me fez triste. Alice não come direito, dorme quando não durmo e se vou dormir ela se recusa a me acompanhar. Ganhei tantos quilos, ganhei aquela velhice que não se encontra em uma ou outra marca de expressão. É como uma manta que todas as mães recebem. Mesmo quando o calor vem – e ele inexoravelmente vem, não consigo me livrar das vestes maternais.

Alice é linda, dizem. Parece comigo, já que o pai não é referência. O pai não existe. Existe só nos meus sonhos de mulherzinha abandonada. Abelardo recusou esse fruto estragado, esse peso de pedra, pedra sem razão, sem mínima alegria como justificativa de tanto esforço. Essa pedra Alice. Mas falo baixo, falo baixo porque devo amar essa criança que veio de mim e não considero minha. Até mesmo Abelardo ela me roubou, roubou seus olhos de céu e estampou no rostinho detestável. Alice roubou Abelardo e me seqüestrou até que eu não sirva mais. Separou-nos para que a serventia fosse maior.

Preciso comprar suas roupas minúsculas, levar na escola, buscar na natação, preciso acompanhar deveres, verificar temperatura e mais um dia foge de mim, dos meus desejos de moça, ainda que a circunstância insista em me dizer mulher. Sou tão bonita tão agradável tão jovem! Eu sou escondida pela manta, pela filha que anda à minha frente, pelo homem que me cicatrizou na testa, nos olhos, na boca, nas coxas, sobretudo no coração.
Eu sou melhor que eu, do que meus dias de mãe, do que a mulher que engravidou sendo criança, sendo pequena demais, sendo amante sem ser mãe. Sou pior que a mãe presente, ausente em si mesma. Sou pior que a preocupação forjada, ela que morra de fome, de sede, de suor, eu não consigo fazer mal a ninguém, somente a mim.

Alice não morre, não quero que morra, não lhe farei mal, mas, mas, não sei mais o que digo, meu horror, meu amor, minha filha. Alice é linda, não percebe nada e ainda diz que me ama. Sim, devo amá-la também.
O que não posso é me suportar. Nunca pude.
"Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
(...)
Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra. " (Hilda Hist)