domingo, 31 de outubro de 2010

Quitinete

Eu só notei os teus cabelos brancos à meia-luz do quarto minúsculo, esse espaço de nós dois. Vitrola quebrada, a rede que te salva um pouquinho do hábito cama-escritório, cama-cama, cama-eu-e-você. Tua sandália de couro, meus pés frios que se abrigam em teus pêlos calorentos. A caneca que eu fiz de cinzeiro e a tela do computador que fizemos de abajur. Os gêmeos que, ainda bem, não haveremos de ter. Mas, se os tivéssemos, eu penso neles com meus olhos grandes demais e a tua cegueira crônica. Gal Costa repleta de plumas cantando somente pra nós dois, e eu sinto um pouco de raiva e orgulho desse teu jeito sereno: Todas as noites dedicadas aos livros (e ao resto do mundo), meus dias congelados te esperando vir. E quando eu penso em ser assim racional, direi desta forma, o trabalho em dia, contas pagas, segunda à sexta, aí tua figura de homem quase austero aparece em frente ao portão da minha casa, sequestra a rotina que sempre aplacou meu temperamento anárquico – eu que não suporto teus horários pregados na parede –, rapta esta moça que no fim das contas só espera por isso mesmo, rasga meu planejamento, arrasa o meu quase, o que nunca haverá de ser projeto de vida e me leva pro teu quarto que agora é meu também.
O despertador não nos perdoa às seis da manhã; eu, por minha vez, seria capaz de destruir esse maldito objeto. Você ri da minha inaptidão, me sufoca nos braços e diz baixinho: bom dia, moça nervosa. Bom dia, todo dia contigo é bom, muito bom, mesmo que ele comece tão cedo, te aparte de mim por doze horas, mesmo que te consuma quase todo, eu me contento com teu cansaço, tua fraqueza, teu metodismo que só pensa no dia seguinte, e se me contento é porque sei que quando anoitecer, abençoado seja o final dos expedientes, ao fim do dia eu estarei sentada em nosso quarto-cama, camisola do dia anterior, te esperando impaciente, os restos de cigarro estarão ali de testemunhas, somente para, nada além, somente para acender o abajur-computador, me despir, te cobrir de mim em nossa cama-casa e dizer em tom de confissão: dorme bem, querido, dorme bem comigo.
(Este é o meu jeito torto de dizer que te amo desde o primeiro dia)