terça-feira, 18 de novembro de 2008

Cabralino

Estou esquecendo as informações imediatas e importantes. Não sei mais lidar com aquelas contas matemáticas, não sei se hoje almocei, às vezes desmaio, às vezes tudo se mostra como mancha, um amontoado de manchas. Vozes imaginárias não vieram nem virão, dizem. Mas sempre que estou só e por acaso algo me chega aos ouvidos, fico pensando se veio de dentro ou de fora – até então veio de fora. Saber do fim é angustiante, por isso é que tentamos viver os dias até que os dias nos tirem de circulação. Estou doente e não sei por que me disseram. Disseram que me disseram porque sou adulto o suficiente para saber. Não sei o que é ser adulto. Ser velho é ser adulto? E nada nunca é suficiente. Tudo é muito pouco ou um pouco demais. Equilíbrio é estar morto, estar morto e servindo de alimento às bactérias. As bactérias fazem parte do eterno ciclo vida-morte. Morte e vida me parece uma ordem mais contundente, como já bem notou meu amigo João Cabral. Meu amigo, digo, porque é poeticamente bonito. Não sou amigo dele, nem poderia, porque o tempo – o tempo e os cemitérios e as bactérias – nos separou. Isso é apenas desculpa. Se ele morasse em minha rua, se pegássemos o mesmo ônibus vermelho, e estudássemos no mesmo edifício, não seríamos amigos. Provavelmente eu não iria ao seu enterro, e vice-versa. Talvez me chegasse a notícia um mês depois. Sabe João? Que João? O rapaz aqui da rua, o rapaz do ônibus vermelho, ele estudou no mesmo edifício que você. Sim, sei, conheço de vista, nunca nos falamos. Morreu.

João foi tudo o que eu pretendia ser antes de me amputarem com a notícia. Não quero mais nada, ser nada é ser, não é? Nada é tão profundo quanto morrer. João está morto, não posso tocá-lo, então toco as páginas encardidas e toco João, toco as letras, as palavras, versos engenhosos e toco nele, João está vivo, João e seus versos me tocam. Vou parar de escrever, vou parar antes que a morte me pare, antes que me parta em pedaços menores que as bactérias. Vou parar de escrever. Vou parar, estou parando. Agora vejo o dia se insinuando pela brecha da janela. O dia vem manso, manso como tudo o que começa. O dia vem e eu vejo, alcanço a luz, a luz me alcança, não me ilumina, incomoda estes olhos cansados e percebo que ainda enxergo, ainda vejo as letras de fôrma, as letras de João engenhoso, ainda transcrevo no meu caderninho de frases bonitas as frases bonitas dele. Ainda consigo seguir a pauta da folha, ainda respeito o fim da linha. Respeito as linhas, as letras, as tintas. Ainda há luz. Mas me disseram da doença, a doença degenerativa. Significa definhar, definhar até a total escuridão, até a morte. Por isso anuncio aqui e agora: Vou parar de escrever. Arranquei a cortina de meu quarto, a cortina diz tudo, diz e esconde. A cortina é marrom. Marrom sinaliza minha idade avançada, dias contados, morte batendo na porta, invadindo, me arrancando do quarto. Arranquei a cortina marrom, porque a luz em breve me será indiferente. Dia e noite são meras convenções, assim como cortinas. Quem não enxerga não sabe se é dia, não sabe a que horas o sol se levanta. Eu nunca quis saber. Atravessei madrugadas que valem meus dois olhos. Madrugadas repletas de asfalto, poesia e mulheres. São as belezas do mundo, sim, são. Madrugadas vivi como dias de verão. Nesses dias eu não estava; no verão repousava de tantas noites em claro.

Marly escreveu alguns textos por ele. Até que João parou de falar. Ninguém escreveria por mim, eu que estou parando. Estou parando porque é definitivo. Nunca publiquei um livro, no entanto sou um artista, sou o que João seria se me fosse. Engenhoso-engenheiro, talentoso, e agora cego, recebe o prêmio Literário por toda a obra, minha extensa e vasta obra, eu recebendo o prêmio com a ajuda de muletas, eu cego colhendo os derradeiros frutos da vida.

Deveria ser assim agora que parei. Mas não será, ninguém sabe meu nome, ninguém lê minhas rimas pífias, minhas crônicas para mim mesmo. Sou engenheiro, o edifício que desenhei talvez caia, cairá depois de mim. Sou engenheiro, mas em breve não serei nada, no máximo um engenheiro morto. E os mortos são apenas mortos. Não existe uma Marly, ela poderia ter sido, caso eu tivesse amado, caso tivessem me amado. Estaria ela agora do meu lado, sofrendo a grande perda de não me ler, de eu não vê-la, sofrendo mais que eu. Esperei tanto por ela, Marly foi todas as amantes, as paixões, nenhuma Marly entre tantas. Sinto agora fortes dores de cabeça, mas disso também já soube anteriormente. Disso também, isso é definhar. Ter dores estúpidas, a cabeça como que contra a parede, os olhos cegando, olhos chorando sem soltar gota d água. Será que João Cabral chorou quando soube que ia cegar? Será que caiu nos braços de Marly e olhou bem o tom de sua pele para não esquecer quantos sinais ela abrigava pelo corpo? Será que saber antecipadamente não o deprimiu tanto quanto agora me deprime saber das luzes contadas, luzes fugidias?

E os cegos choram? Os cegos não vêem absolutamente nada? Vou parar de escrever, vou me jogar pela janela e morrer enxergando a morte. Vou parar de escrever e não me jogarei. Sou covarde demais para suicida, esperarei pela janela iluminada a morte chegar. Vou parar de escrever e nunca mais abrirei os olhos. Assim, terei a ilusão de que não vale a pena observar o espetáculo da vida se consumindo, não vale a pena observar-se definhando.

Agora, vou parar de escrever.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Escritora asilada

Não fosse mais bonita e azeda nectarina seria pêssego. Foi o que a enfermeira disse. Concordei assim que experimentei essa fruta graciosa. Minha lavanda está no final, preciso levantar daqui e escolher meu próprio frasco de perfume, esse pequeno gesto me faz crer que ainda sou últil. Bons cheiros me agradam, rostos sem rugas me parecem mais harmoniosos, essas são duas verdades universais. Quem vier discursar e dizer que não existe nada definitivo, espere até ter sessenta e nove anos. Não há nada mais definitivo que a velhice, essa detestável velhice que me paralisa. Não gosto deles, aqueles velhos penteados e adocicados, jogo de xadrez, bigodes bicolores, eles correndo atrás do tempo, correndo atrás das sobras de tempo, atrás de nós, mulheres que comem nectarina pela manhã. Concluo que os homens são iguais a mim, a mim e as mulheres. Não sei se sou mulher. Sou qualquer coisa entre mulher e pedra. Sou qualquer coisa que fere as mãos e conserva a feminilidade, mesmo com a estranha mania roedora. Rôo tudo, as unhas e minha própria pele. Talvez o homem da minha vida (não é assim que dizem?) seja mordido ao longo dos braços por mim; não morderei ninguém, talvez morda a língua e acabe com essa vida de nunca poder. Eu demonstro afeto com sangue e ternura. Eu que pulso e desejo. Pulso e desejo e pêlos. Meu último amante era extremamente risonho. Todos riam dele, e eu também. Gosto de rir de meus homens, assim os desejo mais. Gostava, passado, passado. Seu sorriso fora o mais bonito até hoje, sorrisos enganam. Espero encontrar outros mais belos – pêlos e dentes. Um homem. É o que me mandaram querer. Hoje sou seca, a idade absorve transas, pele... Até mesmo os filhos são apartados. Um homem e dois filhos. Menino vem primeiro, que não perdemos o estranho costume tradicionalista sem razão de ser. A menina se vier será diferente. Nos modos e nos detestáveis tons rosados. Nunca gostei de rosa, nem de meninas. Jamais ganhei flores, nem ao menos noivei. Quase tive o terceiro rebento, quase o expulsei de mim. Felizmente nem uma coisa nem outra de fato ocorreu. Mas o susto é tão marcante quanto o motivo do susto – foi só susto. Nunca me esquecerei do beijo em minha barriga. Ele disse que o feto sente e ouve. Não cheguei a falar com a criança que no fim das contas não passou de imaginação. Mas falo sozinha sem necessariamente emitir sons, não associem minha estranha mania à idade.

Desde cedo falo comigo mesma. O que é delicioso, devo dizer. Meu pensamento é perfeitamente inteligível e razoável dentro de mim. Não me esforço por organizar sentido ou vocabulário. A idéia me vem de algum lugar e vem pronta, correta e clara. Nunca escrevi a altura de meu pensamento. O meu sonho foi este: Escrever pensando, só me dar conta do ocorrido quando a idéia ocorreu-me e meus dedos obedeceram à poderosa palavra imaginada. Pronto. Depois poderia morrer. Não, depois partiria em um navio qualquer e beijaria tantos e quase todos os marinheiros. Só depois, talvez, morrer. Feito sereia encantadora. Quero pedir que não digam nada, pois para a morte a palavra falha (para a vida também). E que anos e anos se passassem. Nos anos de fadas e sereias esquecidas, tristes anos, quero que me encontrem empoeirada nos sebos (os sebos haverão de permanecer, com toda a sua poesia) e se aventurem assim como fiz ao beijar tantas e tantas bocas sem nunca relatar como e porque o fiz. Hoje quase não tenho lábios (o tempo também os puxou de mim). Quero que a capa dura mofada interesse a alguém – certamente acontecerá, pois tudo acontece se contamos com a eternidade. E meu nome quase apagado não lhe diga nada, mas o folhear dirá. As folhas dirão a que vim, eu mesma, em vida não disse nada que fosse duradouro. Beijei, no máximo. E meus beijos não foram inesquecíveis.

Tudo se esquece. Até minha mãe foi esquecida, pois faleceu antes de mim. Depois dela vieram muitos dias. Dias de cimento, terra, mais tudo o que destrói lembranças e fotografias. O que resta é um amontoado de cidades habitadas por vivos, de preferência vivíssimos – até que alguém morra e desocupe os cômodos deste cortiço que é o mundo. Eu morrendo não deixarei rastro. Diferente de minha mãe, proprietária de edifícios e corpos, missa de sete dias e toda a desnecessária pompa fúnebre, serei levada pela ordem natural das coisas que nascem, crescem, reproduzem dois filhos para depois buscarem o gozo, até que morrem. Busquei prazer até agora – morrendo a cada palavra pronunciada (ou será escrita?), cada vestido de festa, domingos mornos em família , madrugadas jogadas na calçada, a inabalável esperança nos homens irremediáveis. Morrendo, morrendo. Por isso essa fala descontínua e rápida. A morte sussurra – é agora, é agora, agora pontue seu discurso e finalmente se cale.

Não serei como mamãe, guardada em cinzas por mim, pelo marido e por tantos corações. Estarei junto ao vento – invisível e inegavelmente presente nos lábios de quem beijei e não pude marcar. O meu homem nunca chegou. Nunca, nunca. Espero que o homem de minha morte venha, pois em vida só conheci jovens marinheiros. Espero esse homem que nunca tocarei; que ele toque todas as letras de herança e chore. Chore porque não pôde ver meus cabelos, nem saber o tom exato de minha pele, minha pele já foi nectarina. O homem de minha morte chorará a morte da mulher que o amou sem ao menos o ter conhecido. O homem de minha morte velará meu corpo frio, amará a alma que nunca conheceu – nem tive a chance de mostrar. Ele virá e agora devo partir para o beijo fatal.
Amém.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Confissão

Alice tem cinco anos, eu tenho trinta e dois. Abelardo devia ter uns trinta quando me fez triste. Alice não come direito, dorme quando não durmo e se vou dormir ela se recusa a me acompanhar. Ganhei tantos quilos, ganhei aquela velhice que não se encontra em uma ou outra marca de expressão. É como uma manta que todas as mães recebem. Mesmo quando o calor vem – e ele inexoravelmente vem, não consigo me livrar das vestes maternais.

Alice é linda, dizem. Parece comigo, já que o pai não é referência. O pai não existe. Existe só nos meus sonhos de mulherzinha abandonada. Abelardo recusou esse fruto estragado, esse peso de pedra, pedra sem razão, sem mínima alegria como justificativa de tanto esforço. Essa pedra Alice. Mas falo baixo, falo baixo porque devo amar essa criança que veio de mim e não considero minha. Até mesmo Abelardo ela me roubou, roubou seus olhos de céu e estampou no rostinho detestável. Alice roubou Abelardo e me seqüestrou até que eu não sirva mais. Separou-nos para que a serventia fosse maior.

Preciso comprar suas roupas minúsculas, levar na escola, buscar na natação, preciso acompanhar deveres, verificar temperatura e mais um dia foge de mim, dos meus desejos de moça, ainda que a circunstância insista em me dizer mulher. Sou tão bonita tão agradável tão jovem! Eu sou escondida pela manta, pela filha que anda à minha frente, pelo homem que me cicatrizou na testa, nos olhos, na boca, nas coxas, sobretudo no coração.
Eu sou melhor que eu, do que meus dias de mãe, do que a mulher que engravidou sendo criança, sendo pequena demais, sendo amante sem ser mãe. Sou pior que a mãe presente, ausente em si mesma. Sou pior que a preocupação forjada, ela que morra de fome, de sede, de suor, eu não consigo fazer mal a ninguém, somente a mim.

Alice não morre, não quero que morra, não lhe farei mal, mas, mas, não sei mais o que digo, meu horror, meu amor, minha filha. Alice é linda, não percebe nada e ainda diz que me ama. Sim, devo amá-la também.
O que não posso é me suportar. Nunca pude.
"Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
(...)
Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra. " (Hilda Hist)

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Augusta paisagem

Para C.

Gastei tudo em chicletes. Dos anos fugidios, essa lembrança me conserva. Pipoca às sextas-feiras. Eu seria bonita em dois anos ou menos. Um milagreiro afago da natureza que fez em mim borrões permanentes. Não presenciei milagres. Eu sem controle aos jantares, meus cabelos de nascença, grandes pelo tempo e pesados de viver. Os dentes vieram dissonantes do piano azulado que minha mãe constantemente exibia. Nunca vi toda a arcada de meu pai. Meu pai vergonhoso diante dos talheres, engraçado e contido no riso, devia faltar algo; depois soube o que escondia debaixo dos lábios: a gengiva solitária. Por isso nunca segui exemplos, tão repulsivos.

Desde cedo a cinza rodeou nossa fogueira forjada por papéis coloridos e transparentes. Eram cinzas de verdade, escondidas como poeira pelos cantos da casa colorida, casa descascada. Augusto um dia surgiu, serpentina permanente. Os defeitos dele tão bem calculados! Era uma forma de aproximá-lo de nós, nós deformados pela cor vulgar. Eu de mãos infantis e rosadas, unha pouca, ferida e escurecida pelo resto de fogo-fátuo. Augusto e seus dentes de amarelo quase branco. Falo de uma beleza mais admirável que os monumentos esculpidos com tanto afinco, monumentos sem razão de ser. Ele apenas nasceu, formou-se sem correções. Nasceu em dez ou trinta minutos, nas lamas ou em casa, na água, ou mesmo na hora da recepção. Qualquer lugar, hora desmarcada para os bailes, logo veio a primeira dor, certamente única, Augusto nasceu. Deve ter mágoas esquecidas. A mãe o castigou num dia de engano. Mas a paisagem, mesmo que eu adentre e cave, procure algumas discrepâncias, é divina. É divina de me fazer chorar.

Olho de montanhas disformes, o acesso é difícil e fugir torna-se impensável (ainda que eu pense tanto, mas tanto.). Montanhas bruscas, delimitadas pelo desentendimento. Permito-me à raiva, aflição de não ter chão. O pai de Augusto é dele, é ele, ele é lindo e sábio, ignorante de seu magnetismo. A mãe não é Maria, é tudo o que quis ser. A cruz da mãe dele é ser mãe, vez por outra chorar a ausência provisória do filho, e Augusto sempre volta. A cruz dela é um suntuoso pingente de ouro, ela teme o roubo.

Minha montanha é difícil e submissa ao destino que me fez bruta e sem matéria-prima. Resta-me apenas observar o espetáculo. Olhos altos acostumados com a montanha que mais parece poço. Ele comprou uma poltrona de avião, mandou o cérebro pensar noutro idioma. Beijou mulheres-bonecas, beijou quem quis, acertadamente me repeliu. Viu ondas do mesmo mar que se apresenta escuro e sujo de minha janela, essa calmaria me aflige, a maré não muda, eu não mudo. Viu ondas do outro lado, do lado azul que não alcanço.

Talvez eu alcance. Posso trocar meus dentes, esconder as marcas com tinta. Posso fazer sabão com a pele gasta, me enfeitar em panos de nobreza. Augusto me daria as mãos. Talvez eu pudesse, não fosse o gosto por doces e rasgões, eu admito a pobreza da gula, a pobreza de olhar o infinito e permanecer onde estou. Talvez me resgatassem se eu não acenasse da muralha com olhos satisfeitos. Satisfação de ser mínima e nunca paisagem, de ser olho e jamais fotografia. Eu faminta diante do banquete Augusto. Anêmica incurável.

domingo, 1 de junho de 2008

Santa Isabel

O que ocorre é o de sempre: Enquanto nos beijamos pelas esquinas de lixo, neste exato momento um menino qualquer, filho da noite, dos restos de nada, filho das roupas desprezadas aparece em frente ao amor. O menino quase nu, cabelos desgrenhados e um odor dos esgotos que dão para o belíssimo teatro cor-de-rosa; lá fomos ver mentiras maquiadas, lá celebramos a união.
Nosso amor que não pensa nos explorados e oprimidos. Nós que nos exploramos até o último gozo, nos oprimimos de beijos taciturnos. Os engajados abriram mão da dor e da solidão aos pares. Melhor levantarmos bandeiras caseiras, melhor comprarmos moderadamente. Não trocam presentes em datas estipuladas, usam panos até que os panos se recusem a serem usados. Não amam sujeitos com nome, sobrenome e família tolerável (como todas são). Amam numa aura que envolve a todos: Fracos e fortes, principalmente fracos. Principalmente os pobres e sujos e principalmente distantes, sem nome, sobrenome e sem casa.
Sem casa e sem cama, sem mãe que dite horário, sem pai que preze o sexo que não o pertence. Principalmente os famintos, aceitam bananas e cascas igualmente. Aceitam bandeiras caseiras e não se importam com aparência, panos e nomes. Eu finjo que não olho, beijo a pessoa de nome, roupas adequadas e um cheiro que tem seu preço. Beijo meu par e espero que o menino vá embora, que apareça aos solitários, encontre um lixeiro e me esqueça assim como o esquecerei; e não me culpe por não tê-lo parido, por não tê-lo aguardado junto ao berço, manta para cada dia da semana, amor imenso, amor zeloso. Que ele não me culpe por ser indiferente, eu que sou tão pobre quanto ele.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Prece

Deus, dá-me um Deus que caiba no meu coração em cio. Dá-me um pai que não seja meu genitor asilado nas putas. Dá-me uma oração que não seja decorada e decorativa. Deus, dá-me um céu aqui mesmo, nesta terra de gravidade exatamente calculada. Dá-me benção qualquer, para que eu possa me igualar aos que se gabam do dinheiro a mais, da cura repentina, ou mesmo da chuva que não veio em dia de domingo. Sobretudo dá-me paz, Deus. Dá-me paz para nas noites frias, não, nas quentes, eu sobreviver aos recalques, recatos e recados que soam feito leis. Dá-me paz suficiente para os sessenta anos que ainda viverei (é o que dizem). Sessenta anos de manhãs tão pesadas por pactos unilaterais; e noites retalhadas de encontros solitários. Sobretudo dá-me a mim, Deus. Dá-me as torturas que são minhas e agem como se não. Dá-me a leveza dos dias santos e toma para ti o peso dos expedientes. Dá-me a mim. Para que em posse de mim, eu possa crer que és meu, meu Deus.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Dormência

A dor de não sentir dor é fingida. Não sei o que faço sem a minha. Como desprezo machos e fêmeas sem a justificativa do desprezo anterior? Lavo as mãos imediatamente após o toque obrigado, sempre sutil, jamais espontâneo. Alguém me ameaça e suplica por dedos suados? Alguém dentro de mim implora por toques furtivos e longos. Cortei a língua de alguém que me pensa com palavras proibidas. Não digo amo nem venha nem beije. Eu digo que vou hoje, não depois. Que o tempo é curto, vamos logo com isso. Amanhã me calo, alguém me fala comigo e ordena que eu grite. Ordeno a alguém que se cale. E cala. Calo-me diante de possíveis afetos.
A minha dor é maior que a das juvenis suicidas. Pior que a dos escandalosos chorosos em meus ombros. A minha dor é demais para mim. Por isso não escapam lágrimas, por isso me obrigo tirar vestes na frente deles, para eles, devem pensar ingenuamente. Por isso jogo pimenta nos olhos dos que viram meu sexo e se acreditam íntimos. Eles choram por mim, devem pensar. Mas não, não é por mim. Por mim mesma nem eu chorei. Eles choram pelo incômodo, pela ardência, pelo frio que passam quando os expulso de mim nos momentos vulneráveis. Saem nus pela rua, são olhados e gritam de ódio, choram e repetem o nome que digo ser meu; repetem meu nome e no entanto não sabem me diferenciar da massa que vêem. Não choram por mim, choram pelo que fiz e sempre faço. Pela humilhação que os submeto. Não os obrigo, vêm saltitantes seguindo olhos cinzentos e o cheiro selvagem que planejo. Planejo a graça se é dia de graça. Planejo ser encantadora nos dias de farsa.
E sonham comigo, mesmo quando os expulso no meio da noite. Sonham comigo e não choram por mim, nem chorarão. A minha dor é tão grande que não cabe nos amantes que amam me amar e não me amam. A minha dor é tão pura quanto o meu amor sonâmbulo, que é violento nas madrugadas e acorda sem lembranças.
"Uma batalha começa
Como tambores rítmicos para dança e termina
Com uma “retirada ao amanhecer”.
Amor proibido
Algumas vezes também começa e acaba assim."
(Yehuda Amichai)

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Lygia

Você sequer foi embora. Quando não vi, lhe arrastaram num automóvel preto e prosaico, flores sem cheiro, gente bem vestida no calor dessa cidade que não se ajusta às estações. O meu pecado é ver olhos permanentemente fechados, o roxo de suas faces, cabelos mortos sendo levados. Vejo terra e não a vejo. Vejo pás, homens que não lhe abraçaram a não ser nas datas convenientes, carregando sua sepultura; vejo parentes desinformados, amigos que desconheciam o tom dos seus olhos oliva. O meu pecado é não derramar gota d água, não desesperar, não segurar o caixão, não cair teatralmente na terra batida. O meu pecado é não pedir consolo. Eu vejo você sumindo das vistas, penso no desconforto, na falta de ar, de luz, penso em você viva, fingindo o contrário e rindo às nossas custas. Penso em sair imediatamente da circunstância forjada pela dor comum. A minha dor é só minha. Não admito que me ofereçam lenços, ombros, água com açúcar. Não admito que me vejam em prantos por você. Estou em prantos. Corro até chegar em meus aposentos, corro até que nenhum deles me persiga e ofereça ajuda. Tranco as portas, me escondo de janelas. Choro, soluço, o chão me abraça, as roupas me rasgam, o pescoço é molhado, lembranças se instalam no teto, sua voz agride as paredes, refletem em meus ouvidos; nossas gargalhadas ecoam junto com as músicas que você fez e envergonhou-se imediatamente depois, senti o cheiro de suas camisas sempre brancas, o perfume discreto, seu pêlo lavado diariamente, suas mãos infantis, nuas, sem tinta, cutículas, unhas brancas curtas disformes, seus telefonemas nas madrugadas tristes - foram tantas; beijos desesperados, tudo tão incerto! Seu amor por um triz de acabar, eu esperando que você me deixasse num dia qualquer. E você me deixou. A minha dor é só minha, e a culpa é toda sua, minha querida menina morta.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Intimida(de) ou O jogo da verdade

Noite de insetos, cigarros, cerveja. Noite sem homens, mulheres segredadas como todas hão de ser. Era hora de jogar. Era hora de despir-se e no entanto permanecerem intactas em supostos absurdos não compartilhados. Todas pensavam o mesmo e naturalmente se pensavam únicas. Uma queria, outra tinha, a terceira ainda escolhia. Absolutamente clandestinas quanto a eles, que sonhavam com uma mocinha da tevê, ou dormiam com amigas. Noite sem homens; um deitou-se, o outro era espera, do terceiro não se sabia. Afinal, um espaço fora delimitado e abriam-se todas as frágeis cercas que dão para dentro? Só enxergamos o fim quando corremos à procura de umas cores alegres e acidentalmente chegamos lá, vemos o que sempre soubemos certo, sempre soubemos o que todos sabem. E o que vai além? Em mim são poços, são mortos, morto-vivos, lágrimas contidas em lagos inertes; no meu limite infinito é luz, mas uma luz de desordem e miséria. Uma luz desconforto, quase sem luz, jamais sem. Em mim são homens que ainda não formaram rosto, mulheres que me pediram o aspecto e lhes dei de bom grado. No meu terreno proibido e nunca habitado eu estou nua, nua e frígida. Suave nos contornos e na voz. Todos despidos; pessoas que ainda não conheço, assombrações, os defuntos que velo religiosamente e não são absolutamente enterrados (nem nunca serão). Meus dedos nus de toque e de aproximação, faltam anéis, compromissos, faltam mãos que não sejam as minhas, são dedos roídos. Estamos desprotegidos, eu e meus dedos e meus vivos e meus mortos. O vento nos espanta, e nesses dias de vento e binóculos fora da teia, nos juntamos. Eles se escondem num compartimento interditado, apertam-se, calam-se e permanecem até que eu abra as portas e novamente os liberte. Noite de insetos, cigarros, cerveja. Estão todos presos, amordaçados pelo jogo de mulheres que tiram uma peça de roupa, permitem beijos catalogados, talvez leves arrepios não planejados, nada que comprometa seriamente, que as deixe sem ar despudoradas animalescas maravilhosamente instintivas e sorridentes. Negam-se a mostrar o sexo, as ancas, cobrem os seios ou qualquer sinal que as deixe vulneráveis, permanecem intactas.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Venda(val)

Sabe que irei, no entanto me atrai maquinalmente. No entanto tira as vestes, me cobre de laços inofensivos e apertados - convergentes a ela. Usa as cobertas, se esconde, me expõe até que eu implore de desejo. Acovarda-se nos dias de fúria, de despedida, vontade prestes a destruir o que pouco resta. Chora até que eu desista. Ordena que eu saia e no entanto nós górdios colocam-se frente à porta. Ela os coloca. Desloco-me à medida que dorme ou temporariamente ausenta-se. Deixo-lhe e me deixo. Fujo e não aproveito. As moças todas me parecem iguais. Iguais em seu cabelo azul. Iguais nas roupas excessivamente coloridas de uma vida. Todas me parecem idênticas às suas medidas desproporcionais e às unhas nervosamente roídas. Não fosse pelo rosto, não fosse pela falta de rosto. Não vejo olhos cinza, não vejo seu nariz com uma inútil pedrinha brilhante, nem sua boca castigada pelo frio. As outras são pele uniforme. Contornam meus desejos e recusam se mostrar. Volto pela aflição. Nossa poeira, geladeira vazia, móveis que ela trouxe, cama há semanas desforrada. E ela perdida na janela que não dá para paisagem alguma.
Como de costume volto, espero que me retire a venda, desate as mãos e mais uma vez recolha meu coração para si.