sexta-feira, 10 de julho de 2009

Heitor

Ele me ensaiou um beijo na boca e diz com um pouco de saliva há de vir inspiração.

Eu penso que sim, penso que se tivesse a saliva dele falaria de pele macia ou de seus dentes agressivos, o cheiro dos seus cabelos mais longos que dos homens comuns haveria de ficar em minha roupa e eu citaria seu hálito de coca cola e nicotina. Penso que sim, diria tudo e mais que tudo.

Na falta de saliva, por falta nossa, penso em seus braços de atleta, esse poeta. Os poemas dele são de vento e estão aí, na folha seca que cai sem razão, nas moças mulatas e loiras que ele olha e imagina-se vinte anos à frente com elas. Seus versos são de nada, a saliva dele ficou na coca zero que vez ou outra me oferece e nos intermináveis cigarros dos quais não tento me livrar. Ele que é operário de si mesmo, defende Caetano como a um irmão e eu fico ali parada, observando a poesia dele em Caetano, seus olhos de menino incompatíveis com os braços de atleta e mais ainda com a boca de ferro, ele fala ferro e sai ternura, sabem?

Canta todas as músicas decoradas, mas nunca as escuta até o fim. Meu rapaz querido canta para todas as moças esguias, leves, sabe do cheiro e da beleza detalhados em cada uma, mas nunca vai até o fim. Elas sempre se vão, vãs como ele, vão com ele. Que ele vai e vai levando dentro de si tanto delas e um pouco de mim, eu que quase-sou. Ele é quase bonito e, portanto o é; artista e quase normal. Ele me abraça como se fôssemos os dois morrer, sabem? Como se fosse o primeiro ou último toque. E é bonito esse rapaz, é linda a sua pressa por amar amar amar e ser amado-ou-não-ser e ser feliz e sofrer sofrer sofrer e sair por aí e amar de novo de novo de novo e sempre e sempre muito como se fosse morrer e morre de amor para ir vivendo. É linda a sua pressa, e triste também, pois penso que seus abraços não me pertencem. Os braços dele nem dele são, ele que é inquilino de si mesmo. Aqueles longos e apertados abraços – sem vestígio de saliva – são sempre de partida. Quando penso que se foi, e ensaia partidas que duram uma infinidade de meses, num dia cinza ele surge e vai prometendo ao vento que me fica.