sexta-feira, 26 de novembro de 2010

I'm just a station on your way,
I know I'm not your lover.
Leonard Cohen

Não, você não leu Anna Karenina. Não perde nada, é verdade. Enquanto eu estava em companhia de páginas intermináveis, desconheço os caminhos percorridos por você.
Você e seus óculos de homem sério, camisa de botões meticulosos, sua bebedeira em noites solitárias. Eu e minha perdição.
Uma vez você me disse que eu te causo curiosidade. Mas, desde já, aviso: Não há nada para ver. Sou apenas uma moça com muitos livros pela metade, roupas espalhadas pelo chão. Sou apenas uma moça que dorme nas horas indevidas e acorda sempre de sobressalto. É verdade também que eu gostaria de ser mais, de ter muitos segredos para contar, seria quase agradável te causar aquele espanto bom, mas não há nada para ver, nada além do meu caos. Não é um caos colorido ou suave. Um caos de gênio, de iluminado. Sou só uma moça aplacada por seu próprio caos. E você é um homem múltiplo, especializado em deixar coisas e pessoas, sobretudo pessoas, para trás. Eu, por minha vez, guardo todos os cacos que me cortaram. Junto toda a matéria podre e morro um pouco a cada noite de insônia. Eis o nosso impasse. Você busca por novos ares, e eu, bem, eu gosto do meu quarto incomodamente abafado. Há muito previ nossa ruína. Melhor dizendo: a minha, somente minha. Desde que te conheci, notei o desastre chegando aos poucos, escondido entre as luzes que você chamou de paixão. Mas, note bem, suas lâmpadas vão se apagar. E eu não terei um fim tão trágico como  o de Anna Karenina. Não, serei apenas consumida pelo escuro dos amores que ensaiaram e jamais, contudo, chegaram a ser. Serei tragada pela noite dos que imaginam sem nunca concretizar o que quer que seja.

domingo, 31 de outubro de 2010

Quitinete

Eu só notei os teus cabelos brancos à meia-luz do quarto minúsculo, esse espaço de nós dois. Vitrola quebrada, a rede que te salva um pouquinho do hábito cama-escritório, cama-cama, cama-eu-e-você. Tua sandália de couro, meus pés frios que se abrigam em teus pêlos calorentos. A caneca que eu fiz de cinzeiro e a tela do computador que fizemos de abajur. Os gêmeos que, ainda bem, não haveremos de ter. Mas, se os tivéssemos, eu penso neles com meus olhos grandes demais e a tua cegueira crônica. Gal Costa repleta de plumas cantando somente pra nós dois, e eu sinto um pouco de raiva e orgulho desse teu jeito sereno: Todas as noites dedicadas aos livros (e ao resto do mundo), meus dias congelados te esperando vir. E quando eu penso em ser assim racional, direi desta forma, o trabalho em dia, contas pagas, segunda à sexta, aí tua figura de homem quase austero aparece em frente ao portão da minha casa, sequestra a rotina que sempre aplacou meu temperamento anárquico – eu que não suporto teus horários pregados na parede –, rapta esta moça que no fim das contas só espera por isso mesmo, rasga meu planejamento, arrasa o meu quase, o que nunca haverá de ser projeto de vida e me leva pro teu quarto que agora é meu também.
O despertador não nos perdoa às seis da manhã; eu, por minha vez, seria capaz de destruir esse maldito objeto. Você ri da minha inaptidão, me sufoca nos braços e diz baixinho: bom dia, moça nervosa. Bom dia, todo dia contigo é bom, muito bom, mesmo que ele comece tão cedo, te aparte de mim por doze horas, mesmo que te consuma quase todo, eu me contento com teu cansaço, tua fraqueza, teu metodismo que só pensa no dia seguinte, e se me contento é porque sei que quando anoitecer, abençoado seja o final dos expedientes, ao fim do dia eu estarei sentada em nosso quarto-cama, camisola do dia anterior, te esperando impaciente, os restos de cigarro estarão ali de testemunhas, somente para, nada além, somente para acender o abajur-computador, me despir, te cobrir de mim em nossa cama-casa e dizer em tom de confissão: dorme bem, querido, dorme bem comigo.
(Este é o meu jeito torto de dizer que te amo desde o primeiro dia)

segunda-feira, 19 de julho de 2010

O amor não pode esperar

Sabes, querido, te escrevo agora porque gritar não me é permitido. E há tantos dias, tantos meses, há anos guardo em mim o barulho que me causas. A náusea, olhos parados ao que não te é, olhos convulsivos te buscam nas esquinas escuras, em todos os bares, nos copos, sobretudo nos corpos, todos os homens, todas as mulheres que já te encantaram, nos poemas de Drummond e em todos os poemas de amor, nas pontes do Recife, no cais do Recife à espera do teu navio que nunca chega. Sabes, querido, te escrevo agora porque sussurrar em teus ouvidos qualquer coisa banal não é possível, eu que não sei por onde vão teus ouvidos. E o teu corpo, teu rosto ainda moço não estão ao meu alcance, nem de mim nem de meus olhos, meus poros, meus choros que não chegaram a ser, ainda que sejam tanto. Não estás em um canto sequer, embora eu esteja toda impregnada de ti. Meu cheiro é só meu, bem sei, e é todo para ti, meus passos largos sem direção te seguem cegos, e meus ouvidos transformam a multidão de vozes em eco de teu nome composto.

Estou cansada de te carregar nas costas, nos lábios, pestanas indiferentes a qualquer paisagem, pés que não acham, mãos sempre sós, unhas roídas, todos os homens que sublimei e perdi para sempre. Estou cansada de carregar no coração um amor ausente, vista da janela que não posso tocar, não posso descer as escadas, quebrar vidraças e invadir teu mundo. Não consigo, não me deixas, talvez nem percebas minha presença, mas percebes tanto. Hoje faço trinta e um anos, expulsei todos de casa, minha casa é somente platéia para tua rua. Rasguei todas as cortinas para não perder um momento teu sequer, apesar de saber que todos os teus momentos são teus e o que vejo não é nada do que se passa contigo, na solidão intolerável que ostentas nos olhos (lembro dessas palavras que uma vez ouvi de tua boca).

Nesse momento escrevo de minha varanda, e somente escrevo porque sei que agora estás dormindo, suponho que sonhas comigo, embora não sonhes. Estou tão cansada, compreendes? Esses vidros de nada, esses vidros apenas,vidros de morte. Porque não vivo, não celebrei meus anos (mesmo tendo sido todas as celebrações forjadas, não comemorar me entristece ainda mais) e pus a correr meus amantes, amigos, livros pela metade, o mundo enorme e eu minúscula, cheia de ti, tu que és imenso. Estou muito cansada, compreendes? E não tome como queixa, pois as chaves são minhas, a porta sem uso que está no mesmo lugar, é minha a porta, posso entrar e sair, posso dar festas, fechar as cortinas e ignorar a janela que dá para ti. Está claro que toda a minha miséria é somente minha e não há culpados, há muitas vítimas de mim que enlouqueci de amor. Minha janela em outro tempo me assistiu festejar a vida, assistiu também a solidão permanente em meus olhos – sempre o melhor que pude dar, foi também o que te dei e tu recusaste por estar cheio dela.

Aos trinta e um anos não me queixo nem quero de volta o desespero de cores, cores vivas que junto comigo encardiram e já não têm razão de ser. Não te cobro o amor que te dedico, nem peço que saias de minha janela. Estou de mudança, querido. As janelas continuarão sem panos que as cubram, outras vidas te olharão e somente meus sonhos – sobre eles não tenho autoridade – serão repletos de ti. Quem se retira sou eu, eu e meus dias mudos e minha chama insensata e meu amor suicida. Eu retiro meu amor da janela para que possas respirar, e me retiro de tua vista para o fardo ser doce e a vida possível. Sabes, querido, tenho trinta e um anos e sou completamente só, a vista da janela é o que tive de mais bonito. Mas agora preciso de outras paisagens para não apodrecermos em nós mesmos, compreendes? Também não prometo te guardar até o fim de meus dias, pois o futuro é uma voz independente. Apenas me despeço desse amor como quem, por fim, aceita um membro perdido e vai em busca de muletas.