terça-feira, 18 de novembro de 2008

Cabralino

Estou esquecendo as informações imediatas e importantes. Não sei mais lidar com aquelas contas matemáticas, não sei se hoje almocei, às vezes desmaio, às vezes tudo se mostra como mancha, um amontoado de manchas. Vozes imaginárias não vieram nem virão, dizem. Mas sempre que estou só e por acaso algo me chega aos ouvidos, fico pensando se veio de dentro ou de fora – até então veio de fora. Saber do fim é angustiante, por isso é que tentamos viver os dias até que os dias nos tirem de circulação. Estou doente e não sei por que me disseram. Disseram que me disseram porque sou adulto o suficiente para saber. Não sei o que é ser adulto. Ser velho é ser adulto? E nada nunca é suficiente. Tudo é muito pouco ou um pouco demais. Equilíbrio é estar morto, estar morto e servindo de alimento às bactérias. As bactérias fazem parte do eterno ciclo vida-morte. Morte e vida me parece uma ordem mais contundente, como já bem notou meu amigo João Cabral. Meu amigo, digo, porque é poeticamente bonito. Não sou amigo dele, nem poderia, porque o tempo – o tempo e os cemitérios e as bactérias – nos separou. Isso é apenas desculpa. Se ele morasse em minha rua, se pegássemos o mesmo ônibus vermelho, e estudássemos no mesmo edifício, não seríamos amigos. Provavelmente eu não iria ao seu enterro, e vice-versa. Talvez me chegasse a notícia um mês depois. Sabe João? Que João? O rapaz aqui da rua, o rapaz do ônibus vermelho, ele estudou no mesmo edifício que você. Sim, sei, conheço de vista, nunca nos falamos. Morreu.

João foi tudo o que eu pretendia ser antes de me amputarem com a notícia. Não quero mais nada, ser nada é ser, não é? Nada é tão profundo quanto morrer. João está morto, não posso tocá-lo, então toco as páginas encardidas e toco João, toco as letras, as palavras, versos engenhosos e toco nele, João está vivo, João e seus versos me tocam. Vou parar de escrever, vou parar antes que a morte me pare, antes que me parta em pedaços menores que as bactérias. Vou parar de escrever. Vou parar, estou parando. Agora vejo o dia se insinuando pela brecha da janela. O dia vem manso, manso como tudo o que começa. O dia vem e eu vejo, alcanço a luz, a luz me alcança, não me ilumina, incomoda estes olhos cansados e percebo que ainda enxergo, ainda vejo as letras de fôrma, as letras de João engenhoso, ainda transcrevo no meu caderninho de frases bonitas as frases bonitas dele. Ainda consigo seguir a pauta da folha, ainda respeito o fim da linha. Respeito as linhas, as letras, as tintas. Ainda há luz. Mas me disseram da doença, a doença degenerativa. Significa definhar, definhar até a total escuridão, até a morte. Por isso anuncio aqui e agora: Vou parar de escrever. Arranquei a cortina de meu quarto, a cortina diz tudo, diz e esconde. A cortina é marrom. Marrom sinaliza minha idade avançada, dias contados, morte batendo na porta, invadindo, me arrancando do quarto. Arranquei a cortina marrom, porque a luz em breve me será indiferente. Dia e noite são meras convenções, assim como cortinas. Quem não enxerga não sabe se é dia, não sabe a que horas o sol se levanta. Eu nunca quis saber. Atravessei madrugadas que valem meus dois olhos. Madrugadas repletas de asfalto, poesia e mulheres. São as belezas do mundo, sim, são. Madrugadas vivi como dias de verão. Nesses dias eu não estava; no verão repousava de tantas noites em claro.

Marly escreveu alguns textos por ele. Até que João parou de falar. Ninguém escreveria por mim, eu que estou parando. Estou parando porque é definitivo. Nunca publiquei um livro, no entanto sou um artista, sou o que João seria se me fosse. Engenhoso-engenheiro, talentoso, e agora cego, recebe o prêmio Literário por toda a obra, minha extensa e vasta obra, eu recebendo o prêmio com a ajuda de muletas, eu cego colhendo os derradeiros frutos da vida.

Deveria ser assim agora que parei. Mas não será, ninguém sabe meu nome, ninguém lê minhas rimas pífias, minhas crônicas para mim mesmo. Sou engenheiro, o edifício que desenhei talvez caia, cairá depois de mim. Sou engenheiro, mas em breve não serei nada, no máximo um engenheiro morto. E os mortos são apenas mortos. Não existe uma Marly, ela poderia ter sido, caso eu tivesse amado, caso tivessem me amado. Estaria ela agora do meu lado, sofrendo a grande perda de não me ler, de eu não vê-la, sofrendo mais que eu. Esperei tanto por ela, Marly foi todas as amantes, as paixões, nenhuma Marly entre tantas. Sinto agora fortes dores de cabeça, mas disso também já soube anteriormente. Disso também, isso é definhar. Ter dores estúpidas, a cabeça como que contra a parede, os olhos cegando, olhos chorando sem soltar gota d água. Será que João Cabral chorou quando soube que ia cegar? Será que caiu nos braços de Marly e olhou bem o tom de sua pele para não esquecer quantos sinais ela abrigava pelo corpo? Será que saber antecipadamente não o deprimiu tanto quanto agora me deprime saber das luzes contadas, luzes fugidias?

E os cegos choram? Os cegos não vêem absolutamente nada? Vou parar de escrever, vou me jogar pela janela e morrer enxergando a morte. Vou parar de escrever e não me jogarei. Sou covarde demais para suicida, esperarei pela janela iluminada a morte chegar. Vou parar de escrever e nunca mais abrirei os olhos. Assim, terei a ilusão de que não vale a pena observar o espetáculo da vida se consumindo, não vale a pena observar-se definhando.

Agora, vou parar de escrever.