quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Escritora asilada

Não fosse mais bonita e azeda nectarina seria pêssego. Foi o que a enfermeira disse. Concordei assim que experimentei essa fruta graciosa. Minha lavanda está no final, preciso levantar daqui e escolher meu próprio frasco de perfume, esse pequeno gesto me faz crer que ainda sou últil. Bons cheiros me agradam, rostos sem rugas me parecem mais harmoniosos, essas são duas verdades universais. Quem vier discursar e dizer que não existe nada definitivo, espere até ter sessenta e nove anos. Não há nada mais definitivo que a velhice, essa detestável velhice que me paralisa. Não gosto deles, aqueles velhos penteados e adocicados, jogo de xadrez, bigodes bicolores, eles correndo atrás do tempo, correndo atrás das sobras de tempo, atrás de nós, mulheres que comem nectarina pela manhã. Concluo que os homens são iguais a mim, a mim e as mulheres. Não sei se sou mulher. Sou qualquer coisa entre mulher e pedra. Sou qualquer coisa que fere as mãos e conserva a feminilidade, mesmo com a estranha mania roedora. Rôo tudo, as unhas e minha própria pele. Talvez o homem da minha vida (não é assim que dizem?) seja mordido ao longo dos braços por mim; não morderei ninguém, talvez morda a língua e acabe com essa vida de nunca poder. Eu demonstro afeto com sangue e ternura. Eu que pulso e desejo. Pulso e desejo e pêlos. Meu último amante era extremamente risonho. Todos riam dele, e eu também. Gosto de rir de meus homens, assim os desejo mais. Gostava, passado, passado. Seu sorriso fora o mais bonito até hoje, sorrisos enganam. Espero encontrar outros mais belos – pêlos e dentes. Um homem. É o que me mandaram querer. Hoje sou seca, a idade absorve transas, pele... Até mesmo os filhos são apartados. Um homem e dois filhos. Menino vem primeiro, que não perdemos o estranho costume tradicionalista sem razão de ser. A menina se vier será diferente. Nos modos e nos detestáveis tons rosados. Nunca gostei de rosa, nem de meninas. Jamais ganhei flores, nem ao menos noivei. Quase tive o terceiro rebento, quase o expulsei de mim. Felizmente nem uma coisa nem outra de fato ocorreu. Mas o susto é tão marcante quanto o motivo do susto – foi só susto. Nunca me esquecerei do beijo em minha barriga. Ele disse que o feto sente e ouve. Não cheguei a falar com a criança que no fim das contas não passou de imaginação. Mas falo sozinha sem necessariamente emitir sons, não associem minha estranha mania à idade.

Desde cedo falo comigo mesma. O que é delicioso, devo dizer. Meu pensamento é perfeitamente inteligível e razoável dentro de mim. Não me esforço por organizar sentido ou vocabulário. A idéia me vem de algum lugar e vem pronta, correta e clara. Nunca escrevi a altura de meu pensamento. O meu sonho foi este: Escrever pensando, só me dar conta do ocorrido quando a idéia ocorreu-me e meus dedos obedeceram à poderosa palavra imaginada. Pronto. Depois poderia morrer. Não, depois partiria em um navio qualquer e beijaria tantos e quase todos os marinheiros. Só depois, talvez, morrer. Feito sereia encantadora. Quero pedir que não digam nada, pois para a morte a palavra falha (para a vida também). E que anos e anos se passassem. Nos anos de fadas e sereias esquecidas, tristes anos, quero que me encontrem empoeirada nos sebos (os sebos haverão de permanecer, com toda a sua poesia) e se aventurem assim como fiz ao beijar tantas e tantas bocas sem nunca relatar como e porque o fiz. Hoje quase não tenho lábios (o tempo também os puxou de mim). Quero que a capa dura mofada interesse a alguém – certamente acontecerá, pois tudo acontece se contamos com a eternidade. E meu nome quase apagado não lhe diga nada, mas o folhear dirá. As folhas dirão a que vim, eu mesma, em vida não disse nada que fosse duradouro. Beijei, no máximo. E meus beijos não foram inesquecíveis.

Tudo se esquece. Até minha mãe foi esquecida, pois faleceu antes de mim. Depois dela vieram muitos dias. Dias de cimento, terra, mais tudo o que destrói lembranças e fotografias. O que resta é um amontoado de cidades habitadas por vivos, de preferência vivíssimos – até que alguém morra e desocupe os cômodos deste cortiço que é o mundo. Eu morrendo não deixarei rastro. Diferente de minha mãe, proprietária de edifícios e corpos, missa de sete dias e toda a desnecessária pompa fúnebre, serei levada pela ordem natural das coisas que nascem, crescem, reproduzem dois filhos para depois buscarem o gozo, até que morrem. Busquei prazer até agora – morrendo a cada palavra pronunciada (ou será escrita?), cada vestido de festa, domingos mornos em família , madrugadas jogadas na calçada, a inabalável esperança nos homens irremediáveis. Morrendo, morrendo. Por isso essa fala descontínua e rápida. A morte sussurra – é agora, é agora, agora pontue seu discurso e finalmente se cale.

Não serei como mamãe, guardada em cinzas por mim, pelo marido e por tantos corações. Estarei junto ao vento – invisível e inegavelmente presente nos lábios de quem beijei e não pude marcar. O meu homem nunca chegou. Nunca, nunca. Espero que o homem de minha morte venha, pois em vida só conheci jovens marinheiros. Espero esse homem que nunca tocarei; que ele toque todas as letras de herança e chore. Chore porque não pôde ver meus cabelos, nem saber o tom exato de minha pele, minha pele já foi nectarina. O homem de minha morte chorará a morte da mulher que o amou sem ao menos o ter conhecido. O homem de minha morte velará meu corpo frio, amará a alma que nunca conheceu – nem tive a chance de mostrar. Ele virá e agora devo partir para o beijo fatal.
Amém.