Sabes, querido, te escrevo agora porque gritar não me é permitido. E há tantos dias, tantos meses, há anos guardo em mim o barulho que me causas. A náusea, olhos parados ao que não te é, olhos convulsivos te buscam nas esquinas escuras, em todos os bares, nos copos, sobretudo nos corpos, todos os homens, todas as mulheres que já te encantaram, nos poemas de Drummond e em todos os poemas de amor, nas pontes do Recife, no cais do Recife à espera do teu navio que nunca chega. Sabes, querido, te escrevo agora porque sussurrar em teus ouvidos qualquer coisa banal não é possível, eu que não sei por onde vão teus ouvidos. E o teu corpo, teu rosto ainda moço não estão ao meu alcance, nem de mim nem de meus olhos, meus poros, meus choros que não chegaram a ser, ainda que sejam tanto. Não estás em um canto sequer, embora eu esteja toda impregnada de ti. Meu cheiro é só meu, bem sei, e é todo para ti, meus passos largos sem direção te seguem cegos, e meus ouvidos transformam a multidão de vozes em eco de teu nome composto.
Estou cansada de te carregar nas costas, nos lábios, pestanas indiferentes a qualquer paisagem, pés que não acham, mãos sempre sós, unhas roídas, todos os homens que sublimei e perdi para sempre. Estou cansada de carregar no coração um amor ausente, vista da janela que não posso tocar, não posso descer as escadas, quebrar vidraças e invadir teu mundo. Não consigo, não me deixas, talvez nem percebas minha presença, mas percebes tanto. Hoje faço trinta e um anos, expulsei todos de casa, minha casa é somente platéia para tua rua. Rasguei todas as cortinas para não perder um momento teu sequer, apesar de saber que todos os teus momentos são teus e o que vejo não é nada do que se passa contigo, na solidão intolerável que ostentas nos olhos (lembro dessas palavras que uma vez ouvi de tua boca).
Nesse momento escrevo de minha varanda, e somente escrevo porque sei que agora estás dormindo, suponho que sonhas comigo, embora não sonhes. Estou tão cansada, compreendes? Esses vidros de nada, esses vidros apenas,vidros de morte. Porque não vivo, não celebrei meus anos (mesmo tendo sido todas as celebrações forjadas, não comemorar me entristece ainda mais) e pus a correr meus amantes, amigos, livros pela metade, o mundo enorme e eu minúscula, cheia de ti, tu que és imenso. Estou muito cansada, compreendes? E não tome como queixa, pois as chaves são minhas, a porta sem uso que está no mesmo lugar, é minha a porta, posso entrar e sair, posso dar festas, fechar as cortinas e ignorar a janela que dá para ti. Está claro que toda a minha miséria é somente minha e não há culpados, há muitas vítimas de mim que enlouqueci de amor. Minha janela em outro tempo me assistiu festejar a vida, assistiu também a solidão permanente em meus olhos – sempre o melhor que pude dar, foi também o que te dei e tu recusaste por estar cheio dela.
Aos trinta e um anos não me queixo nem quero de volta o desespero de cores, cores vivas que junto comigo encardiram e já não têm razão de ser. Não te cobro o amor que te dedico, nem peço que saias de minha janela. Estou de mudança, querido. As janelas continuarão sem panos que as cubram, outras vidas te olharão e somente meus sonhos – sobre eles não tenho autoridade – serão repletos de ti. Quem se retira sou eu, eu e meus dias mudos e minha chama insensata e meu amor suicida. Eu retiro meu amor da janela para que possas respirar, e me retiro de tua vista para o fardo ser doce e a vida possível. Sabes, querido, tenho trinta e um anos e sou completamente só, a vista da janela é o que tive de mais bonito. Mas agora preciso de outras paisagens para não apodrecermos em nós mesmos, compreendes? Também não prometo te guardar até o fim de meus dias, pois o futuro é uma voz independente. Apenas me despeço desse amor como quem, por fim, aceita um membro perdido e vai em busca de muletas.