quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Carta ao melhor amigo (para emoldurar feito reza)


Esta página em branco tem o peso da minha pretensão de escrever sobre/para você. E sempre me poupei deste dia, desta página em branco que tem o peso do meu amor por você. Tem o peso da repulsa que às vezes tenho pelos dedos dos seus pés na minha frente gritando algo como intimidade. E não gosto dos pesos, desses amores grandes demais. Acredito mesmo num amor pouquinho, controlado, prescindível do seu objeto, num amor coletivamente morno. Acredito mesmo que posso passar sem ver os pés de uma pessoa. Tenho uma mania boba de olhar para todos os pés ao meu alcance. Analiso todos eles muito detalhadamente, enumero seus defeitos, penso sobre a feiura natural que todo pé carrega. Acontece que dos seus pés não sei dizer. O que me faz lembrar do tanto que evitei esta página em branco que me obrigaria a falar de você. Gosto das suas mãos grandes, dos seus dedos tortos que não apontam para lugar algum, gosto da sua barba quando está grande, do seu corpo magro nas roupas folgadas. Gosto dos seus livros espalhados pela casa, gosto até dos seus livros que eu nunca leria, mas gosto deles porque são seus. Também gosto da sua gagueira, das suas caretas, das gírias suas que viraram minhas, dos seus cachorros. Gostaria de parar com essa coisa de gosto disso, gosto daquilo, mas ainda falta dizer que gosto dos seus textos irônicos, da sua tristeza velada, dos seus olhos pisados, das suas sobrancelhas que se arqueiam para baixo, dos seus amores sempre tão falidos quanto os meus. Mas também falta dizer que eu amo você porque às vezes fico pensando se você existe ou se você só existe pra mim. Depois me acalmo e chego à conclusão de que tenho duas sentenças verdadeiras no meio de tanta confusão. Acho que devo dizer que comecei com esta página (agora quase sem espaços em branco) porque sua tristeza me atingiu em cheio, jogaram vidro na minha janela, meu coração amargo perdeu a pose. E esta página é toda e somente sua, pode emoldurar se quiser. Emoldure para os dias difíceis, para os dias de morte ou devastação. Emoldure para todos os dias você lembrar de mim como um ser totalmente amante do seu ser. Emoldure para você saber que eu não existo e que eu só existo para você. Se for preciso, leia em voz alta para saber que todas as nossas brigas passarão. Leia em voz alta para mim quando de mim só restar uma criatura indócil, tristíssima e incorrigivelmente solitária. Grite para mim para eu saber que te tenho, que te guardo e te protejo da minha solidão. Grite para mim quando eu disser que não vou mais, que não tento mais, que agora só fico em casa lendo livros que me poupam desse mundo tão feio. Por favor, me perdoe por pedir tanto nisto aqui que é só uma folha em branco, nisto aqui que é só uma declaração de existência de um amor tão firme e oscilante. É preciso terminar, há tão pouco espaço, é preciso dizer: eu te amo de amor louco e de amor sereno. Eu te amo quase como se não amasse e quase como desesperada. E, por fim, te amo porque sou eu e porque é você.