quinta-feira, 26 de junho de 2008

Augusta paisagem

Para C.

Gastei tudo em chicletes. Dos anos fugidios, essa lembrança me conserva. Pipoca às sextas-feiras. Eu seria bonita em dois anos ou menos. Um milagreiro afago da natureza que fez em mim borrões permanentes. Não presenciei milagres. Eu sem controle aos jantares, meus cabelos de nascença, grandes pelo tempo e pesados de viver. Os dentes vieram dissonantes do piano azulado que minha mãe constantemente exibia. Nunca vi toda a arcada de meu pai. Meu pai vergonhoso diante dos talheres, engraçado e contido no riso, devia faltar algo; depois soube o que escondia debaixo dos lábios: a gengiva solitária. Por isso nunca segui exemplos, tão repulsivos.

Desde cedo a cinza rodeou nossa fogueira forjada por papéis coloridos e transparentes. Eram cinzas de verdade, escondidas como poeira pelos cantos da casa colorida, casa descascada. Augusto um dia surgiu, serpentina permanente. Os defeitos dele tão bem calculados! Era uma forma de aproximá-lo de nós, nós deformados pela cor vulgar. Eu de mãos infantis e rosadas, unha pouca, ferida e escurecida pelo resto de fogo-fátuo. Augusto e seus dentes de amarelo quase branco. Falo de uma beleza mais admirável que os monumentos esculpidos com tanto afinco, monumentos sem razão de ser. Ele apenas nasceu, formou-se sem correções. Nasceu em dez ou trinta minutos, nas lamas ou em casa, na água, ou mesmo na hora da recepção. Qualquer lugar, hora desmarcada para os bailes, logo veio a primeira dor, certamente única, Augusto nasceu. Deve ter mágoas esquecidas. A mãe o castigou num dia de engano. Mas a paisagem, mesmo que eu adentre e cave, procure algumas discrepâncias, é divina. É divina de me fazer chorar.

Olho de montanhas disformes, o acesso é difícil e fugir torna-se impensável (ainda que eu pense tanto, mas tanto.). Montanhas bruscas, delimitadas pelo desentendimento. Permito-me à raiva, aflição de não ter chão. O pai de Augusto é dele, é ele, ele é lindo e sábio, ignorante de seu magnetismo. A mãe não é Maria, é tudo o que quis ser. A cruz da mãe dele é ser mãe, vez por outra chorar a ausência provisória do filho, e Augusto sempre volta. A cruz dela é um suntuoso pingente de ouro, ela teme o roubo.

Minha montanha é difícil e submissa ao destino que me fez bruta e sem matéria-prima. Resta-me apenas observar o espetáculo. Olhos altos acostumados com a montanha que mais parece poço. Ele comprou uma poltrona de avião, mandou o cérebro pensar noutro idioma. Beijou mulheres-bonecas, beijou quem quis, acertadamente me repeliu. Viu ondas do mesmo mar que se apresenta escuro e sujo de minha janela, essa calmaria me aflige, a maré não muda, eu não mudo. Viu ondas do outro lado, do lado azul que não alcanço.

Talvez eu alcance. Posso trocar meus dentes, esconder as marcas com tinta. Posso fazer sabão com a pele gasta, me enfeitar em panos de nobreza. Augusto me daria as mãos. Talvez eu pudesse, não fosse o gosto por doces e rasgões, eu admito a pobreza da gula, a pobreza de olhar o infinito e permanecer onde estou. Talvez me resgatassem se eu não acenasse da muralha com olhos satisfeitos. Satisfação de ser mínima e nunca paisagem, de ser olho e jamais fotografia. Eu faminta diante do banquete Augusto. Anêmica incurável.

4 comentários:

Wellington de Melo disse...

Muuuito bom!
A escola nos cega, sempre.
Somos lá uma mancha que passa, os alunos e os professores.
Lá não somos nada além de uma promessa.

Adorei sua escrita! Por sinal, você conhece o projeto Nós Pós? Novos - e não tão novos assim - autores se apresentam com seus textos. O próximo é dia 02 no Burburinho às 20h. Apareça. Já vou indicar seu blog para Artur, produtor do Nós Pós.

Beijo!

Márcio Filho disse...

Talvez fosse menos se dissesse apenas boitatá.

Ou fosse alguma coisa diferente se me fizesse entender. né?

Amanda Moraes disse...

marina bonita.

Íris: disse...

"prefiro nem comentar"
Esse ta perfeito, nina.

Alguém, por favor, reúne os contos dessa moça e monta um livro!!