Deus, dá-me um Deus que caiba no meu coração em cio. Dá-me um pai que não seja meu genitor asilado nas putas. Dá-me uma oração que não seja decorada e decorativa. Deus, dá-me um céu aqui mesmo, nesta terra de gravidade exatamente calculada. Dá-me benção qualquer, para que eu possa me igualar aos que se gabam do dinheiro a mais, da cura repentina, ou mesmo da chuva que não veio em dia de domingo. Sobretudo dá-me paz, Deus. Dá-me paz para nas noites frias, não, nas quentes, eu sobreviver aos recalques, recatos e recados que soam feito leis. Dá-me paz suficiente para os sessenta anos que ainda viverei (é o que dizem). Sessenta anos de manhãs tão pesadas por pactos unilaterais; e noites retalhadas de encontros solitários. Sobretudo dá-me a mim, Deus. Dá-me as torturas que são minhas e agem como se não. Dá-me a leveza dos dias santos e toma para ti o peso dos expedientes. Dá-me a mim. Para que em posse de mim, eu possa crer que és meu, meu Deus.
quinta-feira, 22 de maio de 2008
terça-feira, 13 de maio de 2008
Dormência
A dor de não sentir dor é fingida. Não sei o que faço sem a minha. Como desprezo machos e fêmeas sem a justificativa do desprezo anterior? Lavo as mãos imediatamente após o toque obrigado, sempre sutil, jamais espontâneo. Alguém me ameaça e suplica por dedos suados? Alguém dentro de mim implora por toques furtivos e longos. Cortei a língua de alguém que me pensa com palavras proibidas. Não digo amo nem venha nem beije. Eu digo que vou hoje, não depois. Que o tempo é curto, vamos logo com isso. Amanhã me calo, alguém me fala comigo e ordena que eu grite. Ordeno a alguém que se cale. E cala. Calo-me diante de possíveis afetos.
A minha dor é maior que a das juvenis suicidas. Pior que a dos escandalosos chorosos em meus ombros. A minha dor é demais para mim. Por isso não escapam lágrimas, por isso me obrigo tirar vestes na frente deles, para eles, devem pensar ingenuamente. Por isso jogo pimenta nos olhos dos que viram meu sexo e se acreditam íntimos. Eles choram por mim, devem pensar. Mas não, não é por mim. Por mim mesma nem eu chorei. Eles choram pelo incômodo, pela ardência, pelo frio que passam quando os expulso de mim nos momentos vulneráveis. Saem nus pela rua, são olhados e gritam de ódio, choram e repetem o nome que digo ser meu; repetem meu nome e no entanto não sabem me diferenciar da massa que vêem. Não choram por mim, choram pelo que fiz e sempre faço. Pela humilhação que os submeto. Não os obrigo, vêm saltitantes seguindo olhos cinzentos e o cheiro selvagem que planejo. Planejo a graça se é dia de graça. Planejo ser encantadora nos dias de farsa.
E sonham comigo, mesmo quando os expulso no meio da noite. Sonham comigo e não choram por mim, nem chorarão. A minha dor é tão grande que não cabe nos amantes que amam me amar e não me amam. A minha dor é tão pura quanto o meu amor sonâmbulo, que é violento nas madrugadas e acorda sem lembranças.
"Uma batalha começa
Como tambores rítmicos para dança e termina
Com uma “retirada ao amanhecer”.
Amor proibido
Algumas vezes também começa e acaba assim."
(Yehuda Amichai)
sexta-feira, 2 de maio de 2008
Lygia
Você sequer foi embora. Quando não vi, lhe arrastaram num automóvel preto e prosaico, flores sem cheiro, gente bem vestida no calor dessa cidade que não se ajusta às estações. O meu pecado é ver olhos permanentemente fechados, o roxo de suas faces, cabelos mortos sendo levados. Vejo terra e não a vejo. Vejo pás, homens que não lhe abraçaram a não ser nas datas convenientes, carregando sua sepultura; vejo parentes desinformados, amigos que desconheciam o tom dos seus olhos oliva. O meu pecado é não derramar gota d água, não desesperar, não segurar o caixão, não cair teatralmente na terra batida. O meu pecado é não pedir consolo. Eu vejo você sumindo das vistas, penso no desconforto, na falta de ar, de luz, penso em você viva, fingindo o contrário e rindo às nossas custas. Penso em sair imediatamente da circunstância forjada pela dor comum. A minha dor é só minha. Não admito que me ofereçam lenços, ombros, água com açúcar. Não admito que me vejam em prantos por você. Estou em prantos. Corro até chegar em meus aposentos, corro até que nenhum deles me persiga e ofereça ajuda. Tranco as portas, me escondo de janelas. Choro, soluço, o chão me abraça, as roupas me rasgam, o pescoço é molhado, lembranças se instalam no teto, sua voz agride as paredes, refletem em meus ouvidos; nossas gargalhadas ecoam junto com as músicas que você fez e envergonhou-se imediatamente depois, senti o cheiro de suas camisas sempre brancas, o perfume discreto, seu pêlo lavado diariamente, suas mãos infantis, nuas, sem tinta, cutículas, unhas brancas curtas disformes, seus telefonemas nas madrugadas tristes - foram tantas; beijos desesperados, tudo tão incerto! Seu amor por um triz de acabar, eu esperando que você me deixasse num dia qualquer. E você me deixou. A minha dor é só minha, e a culpa é toda sua, minha querida menina morta.
Assinar:
Postagens (Atom)