terça-feira, 13 de maio de 2008

Dormência

A dor de não sentir dor é fingida. Não sei o que faço sem a minha. Como desprezo machos e fêmeas sem a justificativa do desprezo anterior? Lavo as mãos imediatamente após o toque obrigado, sempre sutil, jamais espontâneo. Alguém me ameaça e suplica por dedos suados? Alguém dentro de mim implora por toques furtivos e longos. Cortei a língua de alguém que me pensa com palavras proibidas. Não digo amo nem venha nem beije. Eu digo que vou hoje, não depois. Que o tempo é curto, vamos logo com isso. Amanhã me calo, alguém me fala comigo e ordena que eu grite. Ordeno a alguém que se cale. E cala. Calo-me diante de possíveis afetos.
A minha dor é maior que a das juvenis suicidas. Pior que a dos escandalosos chorosos em meus ombros. A minha dor é demais para mim. Por isso não escapam lágrimas, por isso me obrigo tirar vestes na frente deles, para eles, devem pensar ingenuamente. Por isso jogo pimenta nos olhos dos que viram meu sexo e se acreditam íntimos. Eles choram por mim, devem pensar. Mas não, não é por mim. Por mim mesma nem eu chorei. Eles choram pelo incômodo, pela ardência, pelo frio que passam quando os expulso de mim nos momentos vulneráveis. Saem nus pela rua, são olhados e gritam de ódio, choram e repetem o nome que digo ser meu; repetem meu nome e no entanto não sabem me diferenciar da massa que vêem. Não choram por mim, choram pelo que fiz e sempre faço. Pela humilhação que os submeto. Não os obrigo, vêm saltitantes seguindo olhos cinzentos e o cheiro selvagem que planejo. Planejo a graça se é dia de graça. Planejo ser encantadora nos dias de farsa.
E sonham comigo, mesmo quando os expulso no meio da noite. Sonham comigo e não choram por mim, nem chorarão. A minha dor é tão grande que não cabe nos amantes que amam me amar e não me amam. A minha dor é tão pura quanto o meu amor sonâmbulo, que é violento nas madrugadas e acorda sem lembranças.
"Uma batalha começa
Como tambores rítmicos para dança e termina
Com uma “retirada ao amanhecer”.
Amor proibido
Algumas vezes também começa e acaba assim."
(Yehuda Amichai)

2 comentários:

. disse...

todos choram apenas seu próprio medo.

Íris: disse...

Você parece criar verdadeiros heterônimos e os encorpora. Só falta dar nomes a eles. Em cada texto tu se revela uma pessoa diferente.

E tudo cada vez mais lindo. =*