sexta-feira, 2 de maio de 2008

Lygia

Você sequer foi embora. Quando não vi, lhe arrastaram num automóvel preto e prosaico, flores sem cheiro, gente bem vestida no calor dessa cidade que não se ajusta às estações. O meu pecado é ver olhos permanentemente fechados, o roxo de suas faces, cabelos mortos sendo levados. Vejo terra e não a vejo. Vejo pás, homens que não lhe abraçaram a não ser nas datas convenientes, carregando sua sepultura; vejo parentes desinformados, amigos que desconheciam o tom dos seus olhos oliva. O meu pecado é não derramar gota d água, não desesperar, não segurar o caixão, não cair teatralmente na terra batida. O meu pecado é não pedir consolo. Eu vejo você sumindo das vistas, penso no desconforto, na falta de ar, de luz, penso em você viva, fingindo o contrário e rindo às nossas custas. Penso em sair imediatamente da circunstância forjada pela dor comum. A minha dor é só minha. Não admito que me ofereçam lenços, ombros, água com açúcar. Não admito que me vejam em prantos por você. Estou em prantos. Corro até chegar em meus aposentos, corro até que nenhum deles me persiga e ofereça ajuda. Tranco as portas, me escondo de janelas. Choro, soluço, o chão me abraça, as roupas me rasgam, o pescoço é molhado, lembranças se instalam no teto, sua voz agride as paredes, refletem em meus ouvidos; nossas gargalhadas ecoam junto com as músicas que você fez e envergonhou-se imediatamente depois, senti o cheiro de suas camisas sempre brancas, o perfume discreto, seu pêlo lavado diariamente, suas mãos infantis, nuas, sem tinta, cutículas, unhas brancas curtas disformes, seus telefonemas nas madrugadas tristes - foram tantas; beijos desesperados, tudo tão incerto! Seu amor por um triz de acabar, eu esperando que você me deixasse num dia qualquer. E você me deixou. A minha dor é só minha, e a culpa é toda sua, minha querida menina morta.